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Eu não tinha escolha: só me restava abortar meu filho amado


A PEC 181 originalmente falava em extensão da licença maternidade em caso de filho prematuro. Mas a bancada conservadora inseriu, nas emendas, a frase sobre “a inviolabilidade da vida desde a concepção”. Se assim for, fica proibido qualquer debate sobre descriminalização do aborto. E os direitos que as mulheres possuem de aborto legal, em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto anencéfalo, são perdidos. Será que algum dos 18 homens que aprovaram este projeto sabe o que é a dor de uma mulher que se vê obrigada a abortar um filho amado porque sabe que o feto não tem chances de sobreviver – e talvez nem ela sobreviva aos noves meses de tortura? É essa a história que o blog #AgoraÉQueSãoElas apresenta hoje.


Por Cintia Silva*


O que é anencefalia? Essa foi a pergunta que fiquei me fazendo semanas seguidas, lendo o que eu podia, até que encontrei um médico que me explicou. Eu estava grávida de um bebê com anencefalia. Que tinha uma má-formação grave do tubo neural. Pra quem não entendeu, explico de maneira ainda mais simples: é um feto sem cérebro, que não vai sobreviver imediatamente após o parto.


Eu descobri que estava grávida no dia 21 de março de 2017. Vivi uma mistura de sentimentos: eu me sentia grávida, um sentimento único que só quem viveu sabe explicar. Eu já imaginava como seria o rostinho, se seria menino ou menina. Até sonhar com chá de bebê eu comecei.


Eu esperei as 12 semanas, pois dizem que é a fase mais comum de aborto espontâneo. Muito feliz eu me preparei para a minha primeira ultrassonografia morfológica. Fiquei três horas esperando o atendimento, e quando a médica começou o exame, ela logo ficou em silêncio. Eu fazia perguntas, e ela se esquivava das respostas. A consulta foi rápida e ela não me deu o laudo. Disse que eu fosse para casa. Passaram cinco dias e nada do laudo.


Resolvi ir a outro médico. Ouvi tudo de uma vez só. Eu não acreditava que Deus estava fazendo isso comigo, eu só chorava e chorava. Fiquei com raiva de Deus, preciso confessar. Pesquisei muito e vi que os bebês não sobreviviam. Vi mentiras de histórias de bebês sobrevivendo. Mas era tudo mentira. As pessoas mentem para tirar nossa força para decidir pelo aborto. Anencefalia é incompatível com a vida, e isso não há dúvidas.


Eu pensava no meu sofrimento, no sofrimento do bebê. Eu não queria passar por isso, só que lia as pessoas dizendo que uma mulher que faz aborto nesses casos é egoísta. Eu não sou egoísta, ao contrário, estava pensando no melhor para todos nós. Só que isso me perturbava. Eu rezei muito, pedi perdão, mesmo ainda tendo muita raiva de Deus. Eu tinha escolha, aquilo não era um destino de sofrimento. Eu resolvi fazer o aborto.


Todos julgamos e falamos do aborto como se fosse uma coisa que não existisse. Eu tinha jurado para mim mesma que nunca faria um aborto. E lá estava eu, atrás do convênio para fazer um. O médico do convênio me disse que eu precisaria de uma ordem judicial. Isso acabou comigo, eu não sabia se isso era na polícia ou no juiz. Me sentia uma criminosa, e parecia que ninguém queria ouvir minha história. O bebê não ia sobreviver, e eu sendo acusada de querer matar alguém. A sociedade julga sem mesmo saber nossos motivos.


Eu decidi pelo aborto. Comecei a procurar um advogado, fui na defensoria pública de meu estado. Nada, ninguém me ajudava. Fui pesquisar por minha conta. Descobri que havia uma decisão do Supremo Tribunal Federal que me dava esse direito. Era como se fosse uma nova lei – eu não precisava de mais nada nem de ninguém. Só de minha decisão, e ela eu já tinha tomado. Mandei a decisão judicial para o convênio, e eles demoraram a me responder. Eu, às vezes, penso que a primeira médica e o convênio queriam me obrigar a não fazer o aborto.


Eu sai à procura de um serviço de aborto legal, e descobri que existiam – antes eu não sabia. Um anjo me atendeu no serviço. Eu tenho certeza que Deus voltou a cuidar de mim. Passei noites sem dormir, com coração acelerado, até o dia do procedimento. Era uma segunda-feira, cheguei no hospital e já recebi a medicação. Eu tive o trabalho de expulsão, senti dores intensas. A enfermeira disse que era para eu não ver o bebê, mas como eu ia conseguir viver sem saber se fiz a coisa certa? Depois que eu o vi, tive certeza de que fiz a coisa certa.


É tão triste eu ter passado por isso e pessoas que não me conhecem, que não sabem de minha história, saírem julgando. Eu estou aqui para compartilhar com todas as mulheres que passaram pelo mesmo que eu e não tiveram apoio, ou que não sabiam dos seus direitos, eu quero que elas saibam que não estão sozinhas. Eu fiz a minha escolha, era meu direito, e ninguém tira de mim. Eu estou agora em paz, pois sei que foi o certo. Não digo que foi fácil, mas foi a minha escolha e isso ninguém pode tirar de mim.


* Cintia Silva é um nome fictício para proteger a identidade da autora do relato, feito em junho de 2017 para a campanha “Eu vou contar”.

 


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